UM CHAMADO À SIMPLICIDADE
UM CHAMADO À SIMPLICIDADE
Antonio C Jorge
Ainda no final dos anos 70, acreditava firmemente sobre a necessidade da promoção de significativas mudanças na forma de viver, pois o mundo com o desenrolar dos acontecimentos tecnológicos, produtos da visão mecanicista, advinda da revolução industrial e acelerada com o pós-guerra, ganhava uma nova dinâmica, com um modelo de vida que afastava o homem de suas verdadeiras origens. O êxodo rural, a partir dos anos 60, formou as megalópoles, mundo afora, tendo como contrapartida o esvaziamento populacional dos campos.
A década de 70 foi de suma importância, pois paradoxalmente ao avanço tecnológico, fazia fermentar, pelos movimentos da contracultura nascidos na década anterior, questionamentos daquela vida, propondo e fazendo surgir os embriões das comunidades alternativas sustentáveis e resgatando os ideais de comunhão com a natureza que pavimentaram o surgimento da ecologia.
Penso que esse foi um processo onde as pessoas mais sensíveis percebiam intuitivamente que o caminho que estava sendo trilhado não era o mais adequado para a vida. Eram os ventos da nova era que começavam a soprar.
Nesta época eu acreditava que independente de qual caminho fosse trilhado, seriam colocados, de maneira impositiva, severos desafios por fatores exógenos ao homem (fatores externos aos seus desejos), forçando a quebra de paradigmas do modelo, quer por ações contundentes de ordem telúrica, quer por exaustão da capacidade humana de produção dos insumos vitais para a vida. Não que o planeta não possa produzi-los, mas não se equaciona produções baratas quando há interesses econômicos envolvidos, sendo que as commodities alimentícias são alvos de grande interesse e especulação no mercado futuro de ações, como o da Bolsa de Chicago.
Por 50 anos trabalhei profissionalmente com o planejamento de mudanças organizacionais e de métodos de trabalho, estudando estruturas e ministrando ações que pudessem alcançar melhores níveis de resultados de produtividade.
Produtividade significa fazer mais e melhor com menos. É isso que determina a competitividade, pois se a empresa produz seus resultados com qualidade e com baixos custos, irá ter condições de dominar uma boa fatia de seu mercado.
O fazer com menos, naturalmente, significa a introdução de meios de automação de processos, o que invariavelmente significa eliminar postos de trabalho e desonerar os custos com mão de obra.
Aparentemente eu vivia um conflito, pois acreditada na possibilidade de viver de forma simples, mas paralelamente trabalhava para o avanço de um modelo diametralmente oposto. No entanto, as coisas não são tão simples em se tratando de escolhas. Faço isso ou aquilo? Quando se joga a luz em um dos pólos, o outro ficará na sombra e assim, há de se viver a ponderação dos dois lados, ou seja, o caminho do meio, sem se apegar a nenhum dos lados. Conheci pessoas nessa época que largaram tudo na vida para irem viver em comunidades no Mato Grosso, pois acreditavam que o processo de mudanças ocorreria até a virada do milênio. Decidi por continuar e talvez paulatinamente, fazer uma mudança mais planejada do estilo da vida.
Dessa forma, optei em continuar com o trabalho com mudanças corporativas, mas sempre com o compromisso de que as mesmas fossem implementadas de forma menos impactantes para as pessoas envolvidas, fazendo-se as migrações dos processos de forma gradual e a capacitar as pessoas para se ajustarem aos novos cenários do mercado.
Na dinâmica desenfreada do mundo, as mudanças são imperativas e não há como detê-las. Alguns clamarão que pode sim ser resolvido pela ruptura social, mas ao longo da história isso me parece que não se mostrou muito capaz de efetivar significativas mudanças, pois o problema não está exatamente no modelo A, B ou C, mas sim na natureza humana, que ainda se movimenta com seus quereres centrados no ego.
Mas isso não significa que eu não acredite em mudanças por rupturas, muito pelo contrário, mesmo pela razão de que não há outra forma. Mas rupturas de outra ordem, as exógenas, conforme já comentei.
Já no final da década de 70 já estava com uma filha com 2 anos e em 81 nascia o meu filho. Sempre nos vinham questões relacionadas aos desafios da criação deles, pois buscávamos um modelo em que pudesse compatibilizar a formação de pessoas integradas ao mundo tecnológico e ao universo exigido em termos de formação profissional, mas sem perder as referências de origem, dos valores humanos e da natureza.
Minha mulher e eu, compartilhando das mesmas ideias, decidimos adquirir um pequeno espaço de terra nua em uma zona rural de São Paulo, desprovida de qualquer serviço urbano, um pouco distante da pequena cidade sede do município, para que pudéssemos construir o nosso espaço onde criaríamos as condições necessárias para que as crianças pudessem viver essa outra realidade, a vida na simplicidade em comunhão com a natureza.
No local escolhido, não havia fonte natural de água e muito menos de eletricidade, assim como de qualquer condição de habitação.
A primeira providência foi conhecer o Senhor Américo, morador nascido e criado na região, descendente de italianos e possuidor de grande sabedoria dos segredos da natureza. Seu Américo era conhecido como o “homem da varinha”, ou seja, ele detinha conhecimento prático da radiestesia, dom herdado por ancestralidade.
E foi assim, que ele com sua simpatia, recebeu-nos, e indo até o local, pegou de um arbusto um pequeno galho com formato de forquilha, desfolhou-o, e de maneira a segurar com as mãos a duas hastes menores, com a maior a sua frente, foi calmamente andando de pés descalços, até encontrar pelos impulsos assinalados pelo “rudimentar aparelho” os veios promissores em que poderiam verter das profundezas a água necessária para que pudéssemos dar início à nossa empreitada.
Tão logo identificado o local, começou-se a cavar, encontrando-se água doce e pura a uma profundidade de 12 metros. Poço caipira, cavado à mão com o uso de picaretas e pás, cujas paredes foram revestidas por tijolos, sendo uma obra de arte que não se cultiva mais pelo perigo e pelo trabalho que representa.
Para extrair a água instalei uma bomba manual, daquelas que vemos nos filmes do velho oeste americano, onde tem uma alavanca que é acionada de cima para baixo e assim sucessivamente, para trazer o precioso líquido para a superfície. Momento mágico, pois a água é o principal elemento da vida e sem ela os nossos projetos estariam frustrados.
A partir daí, a casa foi construída em seis meses, de forma a que ao final desse período já a habitávamos.
Como não havia eletricidade, provemos a iluminação por meio de lampiões a querosene e para o banho instalamos um aquecedor rudimentar que continha um queimador alimentado a gás de botijão que aquecia a água em um recipiente com serpentina de cobre. Tomávamos banho embaixo de um fogareiro.
Não raro a água terminava quando os banhos eram mais demorados, o que exigia que alguém fosse até o poço para fazer o exaustivo trabalho de bombear a água necessária, enquanto o outro aguardava ensaboado, às vezes passando um friozinho. Naturalmente a saída do gás tinha que ser imediatamente interrompida, pois poderia danificar o aparelho.
Fizemos até um acordo entre nós, para que cada um assumisse a tarefa, em regime de rodízio, de dar 50 bombeadas antes dos banhos, mesmo pelo motivo de ser uma boa oportunidade para fazermos algumas flexões com os braços e mantermos o corpo em forma.
Todos os finais de semana, assim como feriados e férias, passávamos no local, nós e as crianças, sempre acompanhados pelos meus pais e minha avó paterna, e regularmente na companhia de primos e amigos que sempre estávamos a festejar a vida com alegria e amor.
Esses foram os melhores momentos, pois as noites eram dedicadas às longas conversas, iluminadas à luz bruxuleante dos lampiões e velas.
Minha avó adorava ir conosco, pois a sua memória era remetida à infância, lá pelas terras mineiras. Ela não gostava de dormir no escuro e para deixá-la mais confortável, improvisávamos meios alternativos de manter sempre um ponto de luz, ainda que de fraca intensidade.
Colocávamos um copo com água com uma pequena lâmina de óleo que ficava na superfície. Sobre o óleo púnhamos uma tira de cortiça cortada de uma rolha a qual era furada no meio e introduzíamos um pavio feito de um pequeno pedaço de barbante, que entrava em contato com o óleo. A cortiça flutuando e o pavio aceso garantia uma queima regular por toda a noite, produzindo a pequena luz.
E assim ela dormia em paz em refúgio das sombras da escuridão, sombras que persistiam a alimentar o universo de infância de minha avó Filhinha. Sim, ela era chamada por filhinha, mesmo sendo a nossa querida avó.
E foi assim, durante muitos meses, até que nos demos ao luxo de colocarmos um transformador para termos eletricidade na residência, o que trouxe um conforto, mas que também fez com que mudássemos um pouco o saudável hábito de nos aconchegarmos todos em volta da luz do lampião, o que nos remetia a vivermos a autenticidade da vida e do compartilhamento das conversas, das histórias de família e dos causos que cada um contava para a alegria de todos.
Mesmo com o advento da luz elétrica, sempre procurávamos manter o estilo de vida simples, pois se já não era mais possível sentarmos em volta do lampião, fazíamos uma fogueira às noites onde todos se aconchegavam.
Durante o dia nós nos ocupávamos nas lidas com a terra, preparando-a para a horta, formando o pomar e “tocando” em frente o nosso projeto de plantio de diferentes árvores, a partir de sementes em viveiros que construímos e outras mudas adquiridas, plano que se nos ocupou durante anos.
Foram pinus, araucárias, ciprestes e uma diversidade grande de outros pinheiros, bem como cedros, acácias, ipês, flamboyants, sansão do campo, primaveras e um sem número de variedades de espécies de maneira que o local se transformou em um denso bosque com mais de 1 mil exemplares num espaço de 15 mil metros. Isso fez com que se criasse um abrigo e ninhos para pequenos animais e aves, como beija flores, pombas, sabiás, tico-tico, maritacas entre outros e até tucanos que começaram a chegar posteriormente.
Tudo isso construído com o propósito de fazer a integração das crianças com esse universo da simplicidade da natureza, do convívio com a mata, com os animais, compreendendo os ciclos, dos dias e das noites, das fases da Lua, do pulsar da vida e ter o contato com a morte, pois esta faz parte da vida, na medida em que na natureza se torna mais visível essa aparente dicotomia.
Na medida em que eles foram crescendo, seguiram a vida nos padrões e condicionamentos de “conforto” oferecidos pelo “modelo de modernidade” da sociedade, sem, contudo, terem sido contaminados por ela, pois incorporaram os valores que os tornariam amantes da natureza, pautando-se pelo respeito a toda forma da vida e sendo gentis com toda expressão da vida, tendo sido essa uma preparação para que eles pudessem melhor se adaptar a outras condições da vida.
Passados 40 anos, deparamos-nos com a realidade de uma massiva globalização comercial, com a alta tecnologia da informação e outros recursos inimagináveis, mesmo para aqueles mais afeitos à modernidade, mas que não possibilita que se acompanhe o frenético ritmo da inovação, pois a cada dia cria-se algo inusitado, que coloca o que foi concebido ontem, que era o que de melhor havia, em condição de total desuso, sucateando sonhos e alimentando toda sorte de devaneios de consumo.
Passou-se a viver, mais do que nunca, a busca de uma falsa felicidade pelas obtenções de posses e pelo prazer do estar sem qualquer preocupação com a essência do ser. Caminho para toda a sorte de desalentos, muitas vezes supridos pelas fugas existenciais incluindo o álcool e as drogas.
Essa espiral de crescimento, com uma exponencial de expansão acelerada nunca vista, remete o mundo a um destino incerto que a meu ver não tem como ser mudado, exceto pela ruptura motivada pela exaustão ou por outro vetor exógeno, pois medidas endógenas (promovidas pela ação do próprio homem) não têm mais a capacidade de alterar a trajetória desse grande navio que mesmo inerte continua a se mover pela inexistência de uma força capaz de retardá-lo ou de fazer mudar sua direção. Assim, somente uma colisão com consequências imprevisíveis poderá pará-lo.
Aí surge o inusitado! O chamado novo coronavirus!
Será ele o fator exógeno esperado? Será esse o vetor da profunda transformação anunciada?
Seguramente o mundo me parece que não será mais o mesmo e independente das vidas ceifadas e de todo o mal causado, ele pode ser o elemento transformador que poderá fazer com que o homem comece a valorizar o que há de essencial na vida.
Talvez, a maior lição que ele está a nos ensinar é a prática do desapego. Em termos materiais todos terão algum tipo de perda, seja ela do emprego, de dinheiro, de posses, do padrão de vida, do poder, o que exigirá de todos novos olhares para o mundo e a capacidade de resiliência.
No mínimo a economia mundial e as coligações geopolíticas serão redesenhadas, impactando a vida de todos.
Assim, resta-nos a nos interiorizar, a viver ao chamado da simplicidade e esses tempos de confinamento têm-nos ensinado isso.
Façamos o necessário para nos despirmos das vaidades, de nossa condição de crermos que somos o que possuímos ou da condição de poderes a que estamos revestidos, de nossos posicionamentos soberbos, de nossos pseudo conhecimentos, títulos e saberes, pois isso não nos fazem diferentes, melhores ou mais capacitados diante do novo mundo que se avizinha.
Será ele o único agente capaz de promover essa profunda transformação?
Não sabemos e isso dependerá de como será o comportamento humano daqui para frente, do grau de solidariedade para com o próximo. Mas de uma forma ou de outra nos deixa muito claro sobre a fragilidade da vida, ainda que muitos achem que o vírus não seja revestido da letalidade propagada. Pouco importa, os efeitos já estão aí instalados.
O chamado é pela consciência, pelo compartilhar, a viver a simplicidade, pois necessitamos muito pouco para viver. E aí as coisas poderão ser ressignificadas.
Caso contrário, experimentaremos novos sabores de fel a nos impor os limites da natureza.
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