Sobre Pecados e Virtudes - Ensaio
Extraído do capítulo "Pecados e Virtudes" do Livro "Um Peregrino do Tempo"
Na última fala de Sócrates no livro A República, Platão nos conta que “Cada alma é obrigada a beber certa quantidade dessa água, mas as que não usam de prudência bebem mais do que deviam. Ao beberem, perdem a memória de tudo. Então, quando todas adormeceram e a noite chegou à metade, um trovão se fez ouvir, acompanhado de um tremor de terra, e as almas, cada uma por uma via diferente, lançadas de repente nos espaços superiores para o lugar do seu nascimento, faiscaram como estrelas”.
A água a que somos forçados a beber provém do rio Lethe, o rio do esquecimento, pelo qual obrigatoriamente temos que passar vindos do Hades (região dos mortos) para adentrarmos ao mundo da vida na matéria como faíscas das estrelas (luz astral). Lethe é um dos cinco rios do Hades, sendo que Homero também faz referência ao dizer que “as almas eram vistas como sombras que partiam para o Hades após a morte”.
O poeta Virgílio também em Eneida, livro 6, menciona que “as almas bebem desse rio, esquecendo-se do passado e que, pelo seu novo destino, assumem outros corpos necessários para viverem”. Assim, já era recorrente a ideia da Reencarnação e que, metaforicamente ao beber daquelas águas, passamos por um processo de esquecimento de vidas pregressas, antes de adentrarmos a uma nova existência. Já mencionei que Lethe significa esquecimento e a palavra verdade em grego é Aletheia, ou seja aquilo que é revelado, relembrando o que Platão também falava que “aprender é recordar”. Aliás, Sócrates que criou o método da maiêutica, que significa “dar à luz” ou “parir”, reafirmava que aprender é recordar pois o conhecimento da verdade já está latente nos homens, podendo-se fazer aflorar aos poucos na medida em que se responde a uma série de perguntas simples, quase ingênuas, porém inteligentes.
Aquilo que foi esquecido pode ser relembrado. Já foi mencionado o mito de Narciso, ao apresentarmos a tela de Caravaggio, mas aqui vamos explorar um pouco mais o mito.
Em Metamorfoses, segundo Ovídio, os pais de Narciso, antes de seu nascimento, foram consultar o oráculo e tiveram por resposta que a criança seria bela e teria uma longa vida, desde que nunca visse seu próprio rosto. Narciso cresceu, e se transformou num jovem de grande beleza o que despertava amor em todos, mas era tão orgulhoso e arrogante que, ao desprezar uma ninfa chamada Eco, que o amava intensamente, foi condenado pelos deuses a apaixonar-se pelo seu próprio reflexo na lagoa de Eco. Encantado pela sua própria beleza, Narciso deitou-se na margem do rio e definhou, olhando-se na água a procurar as feições pelas quais se apaixonara. Existem outras versões, mas todas remetem ao drama da individualidade, a qual nos lança à prática dos pecados, entendendo-se por pecado o ato de errar o alvo, por não o ver ou por desconhecê-lo (hamartia no original em grego).
Erramos o alvo quando não vemos, quando não estamos cientes do que deve ser feito. No caminho óctuplo de Budha, o primeiro passo é a Reta Visão, e na Vedanta é o discernimento (Viveka), sendo que somente pela correta visão ou pelo discernimento é que se pode saber o que é bom, belo e verdadeiro. Naturalmente, se passamos pelo rio do esquecimento, naturalmente estaremos eclipsados em nossa visão fazendo com que não conheçamos o alvo, as metas, os objetivos, que se constituem no nosso plano verdadeiro da vida.
Isso é providencial e não uma punição dos deuses, como no caso de Narciso ao ser destinado a sofrer pelos quereres de si próprio. É necessário que estejamos esquecidos para sermos submetidos às provas pelas experiências, que levam gradualmente às descobertas da realidade última pelas nossas capacidades de discernir e alcançarmos a sabedoria.
Assim, ao nascermos, caímos na total ignorância de nossas referências de pureza da alma e não vemos mais a nossa verdadeira essência, passando a viver enredados pelos sete pecados O primeiro pecado é justamente a cegueira, na medida em que não mais vemos quem de fato somos. Então, caímos em inveja, inveja dos deuses, a negação de Deus, de tudo que é criado e de tudo aquilo que seja diferente. Já vimos, mas aqui volto a repetir, que o prefixo “in” significa privação ou negação, assim como do movimento para dentro. Quando aplicado ao radical “veja”, vai dar a conotação de não ver, ou ver para dentro de si próprio, o que gera a palavra “inveja”. Ora, se não vemos a realidade, veremos apenas aquilo que estiver voltado à nossa própria identidade do ego, sendo esse o nosso grande desafio. Identidade é aquilo que sou ou aquilo pelo qual eu me identifico, sendo que aquilo que não sou ou não me identifico, torna-se o diferente. Por exemplo, sou do sexo masculino ou feminino, de uma nacionalidade, de uma “cor”, de uma origem tal, de uma ideologia y, com gostos pessoais, que me fazem afirmar as coisas de minha a identidade e a de vir a negar o que vejo como diferente.
A identidade inclui (nós, pertencemos, bons, puros, desenvolvidos, racionais, normais), enquanto que a diferença exclui (eles, não pertencemos, maus, impuros, primitivos, irracionais, anormais). Mas a afirmação da identidade somente é possível pela existência das diferenças, havendo uma interdependência entre elas. Assim, temos a ideação que não contém a identidade e a manifestação que é o império das diferenças, sendo esse o grande desafio de conciliação que temos pela frente.
O mundo manifestado nas diferenças nos remete a vivermos intensamente a individualidade, pois mesmo tendo afinidades com outros que nos assemelhamos, sempre haverá algo que nos diferencia dos demais, levando-nos a um isolamento centrado em nós mesmos, a viver o egocentrismo que se manifesta nos sete pecados.
Em grego a palavra idios significa próprio, pessoal, privado, dando origem a tudo o que remete à separatividade, como por exemplo: idiossincrasia, idioma, ideologia, sendo que quanto mais idios nos tornarmos, mais idiota nós seremos, entendendo-se por idiota aquele desprovido de inteligência, de discernimento, tolo e estúpido. Este viver no mundo das diferenças na manifestação, projeta-nos a viver as vicissitudes e adversidades da vida, tornando-nos reféns dos desejos movidos pela satisfação de nossas necessidades mundanas de afirmação de uma identidade, de uma personalidade que não tem consistência, pois é irreal, transitória e efêmera diante da Alma Humana.
Assim, nascem os demais pecados, cada um sendo desenvolvido dentro das necessidades de atendimento dos desejos, desde os mais grosseiros, até os mais requintados, mas todos da mesma natureza, pois estão centrados no ego.
O quadro abaixo nos ajuda a refletir sobre essas questões.
O que é a inveja senão a falta de discernimento?
O que é a preguiça senão a falta de esforço e da vontade?
O que é a cobiça senão a falta do contentamento?
O que é o orgulho senão a falta de humildade?
O que é a ira senão a falta de bondade e de paciência?
O que a avidez ou gula senão a falta de temperança?
O que é a luxúria senão a falta de generosidade?
Não há preponderância de um pecado sobre outro, pois todos são frutos de nosso egoísmo, do não querer partilhar.
Se eu sou invejoso é por egoísmo, pois não vejo que já tenho a perfeição dentro de meu coração.
Se eu sou preguiçoso é por egoísmo, pois quero que outros façam por mim.
Se eu cobiço é por egoísmo, pois não me contento com o que já possuo.
Se eu me orgulho é por egoísmo, pois não consigo me colocar em posição de humilde servo do Senhor.
Se eu manifesto minha ira é por egoísmo, pois me falta paciência e a compreensão das necessidades alheias e de que tudo ao seu tempo se resolve.
Se eu sou guloso é por egoísmo, pois não sei repartir e me falta a moderação.
Se eu sou sensual a procura dos prazeres é por egoísmo, pois me falta a generosidade em compartilhar o amor.
Desta forma, o problema é realmente o ego, que nasce da distorção pela falta do discernimento, o que está associada à mente cognitiva que a tudo analisa e segrega. Sócrates acreditava que cada pessoa tem um daimon pessoal, um protetor que a inspira e em certos momentos pode praticamente possuí-la, podendo ser tomado como aspectos indomáveis do inconsciente, capazes de contrapor o senso comum, tanto para o bem como para o mal.
Cada daimon pode estar associado a um planeta, sendo os gênios que estarão a exercer seus papéis em nossa estrutura psíquica inconsciente.
A mente em astrologia está correlacionada a Mercúrio, que contém os mesmos atributos do pensar de forma analítica e discriminativa, estando associado, por exemplo, ao “capeta” (basta ver o símbolo de Mercúrio com os dois cifres), que é aquele que nos instiga a fazer a separatividade, lembrando que ele é a serpente, o Prometeu ou a mente, criada pelo princípio manásico, só que agora é projetada na racionalidade submetida à dualidade no mundo objetivo. Mas a mente pode ser também a que vai conduzir ao discernimento, a depender de como ele atuará. Se a mente estiver a serviço de sua patroa, a sabedoria (Buddhi), ela será uma ótima serva, mas se ela estiver voltada a saciar os desejos, será uma péssima empregada.
A Lua está relacionada à preguiça, Vênus à luxúria, Marte à ira, Júpiter à gula, Saturno à cobiça ou avareza e Sol ao orgulho, podendo ser também os condutores a estruturar a nossa psique, no sentido de nos mostrar o caminho das virtudes, pois eles somente são agentes intermediários que fazem a ligação entre as divindades e o nosso plano da manifestação.
Podem ser considerados santos ou demônios e temos que compreender que os demônios cumprem seu papel, na medida em que, paradoxalmente, são indutores necessários para o caminho do bem.
Gibran Khalil, em sua obra Temporais, apresenta no conto “Satanás” uma interessante narrativa sobre essa dicotomia da vida, para o qual extraí da tradução feita por Mansour Yousef Challita, que foi escritor, diplomata libanês e o principal tradutor da obra do amado poeta para o português.
Diz o conto que:
“Padre Simão que era conhecedor profundo dos assuntos espirituais e ... percorria as aldeias do Líbano do Norte, pregando penitência aos fiéis, curando suas almas do mal e prevenindo-os contra as armadilhas do demônio, a quem padre Simão combatia dia e noite até um dia que ele encontra um moribundo clamando por ajuda, para o qual depois de titubear, deu-lhe atenção, pois falava”: “Não me abandones, não me abandones. Tu me conheces e eu te conheço. Vou morrer se não me socorreres...”
“O padre aproximou-se, inclinou-se sobre o moribundo e viu uma face estranha, na qual se misturavam a inteligência e a astúcia, a fealdade e a beleza, a perversidade e a doçura. Recuou e gritou: “Quem és tu?...”
“O moribundo mexeu-se ligeiramente, fitou os olhos do padre com um sorriso significativo, e disse numa voz profunda e suave: “Eu sou Satanás...”
“O padre soltou um grito terrível e disse trêmulo: Deus me revelou tua face infernal para alimentar meu ódio por ti. Sê maldito até o fim dos tempos!”
“O demônio respondeu com certa impaciência: Não sabes o que dizes, e não calculas o crime que cometes contra ti mesmo. Eu fui e continuo a ser a causa de teu bem-estar e de tua felicidade”.
“Menosprezas meus benefícios e negas meu mérito, enquanto vives à minha sombra? Não foi minha existência a justificação da profissão que escolheste, e meu nome, o lema de tua vida? Que outra profissão abraçarias, se o destino decretasse a minha morte e os ventos desvanecessem o meu nome?”
“Há vinte e cinco anos, percorres estas aldeias para prevenir os homens contra minhas armadilhas, e eles compram tuas preleções com seu dinheiro e os frutos dos seus campos. Que outra coisa comprariam de ti amanhã, se soubessem que seu inimigo, o demônio, morreu e que estão livres dos seus malefícios?”
“Sei agora que, se morrer, a tentação morrerá contigo, e assim desaparecerão as forças que obrigam o homem à prudência e o levam a rezar, jejuar e adorar...”
“... Então, o padre Simão aproximou-se do demônio, carregou-o às costas e prosseguiu no seu caminho”.
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