top of page

A Cena Muda - Crônica

O maior legado que uma pessoa pode passar para a outra não se constitui em bens materiais ou culturais, mas sim são os exemplos de conduta que podem servir de inspiração.

Há uns 15 anos eu fui procurado por Nicola Falabella, advogado, cineasta, pesquisador cultural e poeta, autor do “Romanceiro de Congonhas - Poema Barroco”, entre outros, nascido em Mar de Espanha, cidade mineira da Zona da Mata, sendo que ele estava em busca de dados de minha família já que fora amigo de infância do meu pai e de meus tios que também lá nasceram.


Isso lá pelo final da década de 20 do século passado. Não sei exatamente como ele me encontrou, mas estava lá no telefone sabendo quem eu era. Talvez tenha me encontrado pelo sobrenome e de dados da internet, já que ele, apesar da idade avançada, era conhecedor das modernas tecnologias e cruzando dados de filiação e cidades, não foi difícil descobrir alguém que fosse da família.


Ele estava escrevendo um livro de memórias intitulado “Antes que a Luz se Acabe”, narrando a época de sua infância, no sentido de perpetuar aqueles momentos guardados no coração.


Creio que quando ele me procurou, ele já devia pressentir o final de sua vida, daí a sua pressa em concluir o livro, mesmo em razão do próprio nome do livro que sugeria ser a sua última obra.


Adquiri vários exemplares, os quais continham riqueza de detalhes de seu intenso convívio com minha família, frequentando a casa dos meus avós e o cinema de propriedade de meu avô Gibran.


A sua admiração pelo Gibran superava qualquer expectativa, na medida em que ele registra que meu avô e o seu cinema, representaram para ele a sua janela para o mundo, inspirando-o na carreira como literato e cineasta.


Para minha surpresa, meu avô se tornou uma referência para aquele menino que décadas depois, já como um ancião, registraria as histórias que já conhecíamos pela tradição oral de família, mas que sempre as considerávamos com certa reserva, pois é normal que entre a família se aumente um pouco as virtudes das coisas e até exagerando nas cores, mas não, lá estavam as mesmas histórias, agora escritas pela visão daquele que as fotografou com seus olhos aquelas cenas que continuavam vívidas em sua memória.


Existe um capítulo no seu livro que ele relata ter presenciado uma colocação provocativa de uma pessoa ao meu avô, quando o cinema deixou de ser mudo e passou a ser falado, ocasião em que existia uma revista denominada “A Cena Muda”.


A pessoa comentou: E agora Gibran? Será o fim do cinema em Mar de Espanha e da revista, já que ela trata da cena muda e que agora será falada?


Meu avô, que já estava trabalhando para a aquisição de novos projetores sonoros e percebendo a ponta de inveja de seu interlocutor, respondeu prontamente: “meu caro, você está equivocado, pois a cena sempre muda”.


A Cena Muda foi a revista sobre cinema de maior duração no Brasil, lançada em 1921, originalmente com o nome “A Scena Muda” quando mudou em 1941 para "A Cêna Muda". Foi a primeira revista brasileira sobre cinema e resistiu até maio de 1955.


Mas voltando ao Nicola.


Foi com imensa satisfação que pudemos conversar várias vezes, por telefone, já que ele residia em Belo Horizonte.


Não passei a ele dados e narrativas, pois estas ele já as tinha com profundidade, conhecendo mais do que todos nós, mesmo porque meu pai e alguns tios já não estavam mais entre nós. Ele queria mesmo saber do destino de cada um após mais de 8 décadas de separação das famílias. Queria saber também de fotos que ele ainda não tinha em seu acervo, principalmente fotos do cinema, do bar anexo, das mesas de bilhar, que retratavam aquele ambiente acolhedor que ainda faltavam em seu mosaico a ser publicado.


Após pesquisas no acervo de minha mãe que guardava fotos antigas em álbuns zelosamente mantidos por ela, encontrei um grande tesouro de imagens, as quais escaneei e enviei por e-mail para a alegria de Nicola.


Falamos algumas vezes posteriormente, até quando fiquei sabendo que ele também tinha feito a sua passagem. A grande viagem da última aventura.


Esse é o maior legado que a pessoa pode deixar. Algo, por mais insignificante que seja, pode marcar uma criança, representando modelos a serem seguidos, inspirando sonhos e planos na caminhada dos indivíduos.


O exemplo de Nicola Falabella de alguma forma me inspira, pois me identifiquei com ele, com suas histórias, transportando-me para aquelas narrativas, vendo-me como menino, imaginando-me enxergar pelos seus olhos aquelas cenas que sempre mudam, mas que também ficaram congeladas na memória num relicário de amor.


Parafraseando Heráclito de Éfesos, que há 2.500 já mencionava sobre a impermanência:


“A cena sempre muda”.

20 visualizações

Comments


bottom of page