Quem somos? A projeção, o projetor ou o projecionista? - Ensaio
QUEM SOMOS? A PROJEÇÃO, O PROJETOR OU O PROJECIONISTA?
Memórias e reflexões.
Recordo com saudade de minha infância nos anos dourados (fins da década de 50 até meados dos 60), onde morava com minha família na pequena Mongaguá (litoral sul de São Paulo), na ocasião um lugarejo ligado à São Paulo pelo ramal da antiga Estrada de Ferro Sorocabana e desprovido da “modernidade” existente na época, como telefonia e TV, por exemplo.
Assim, vivíamos isolados, com o imenso oceano de um lado e de outro a alta Serra do Mar que se precipita sobre a faixa litorânea, inserindo-nos em uma atmosfera de proteção e aconchego pela exuberante natureza virgem da bela Mata Atlântica, o nosso ninho, o nosso paraíso na Terra.
Às noites nossas diversões, além das conversas e brincadeiras intermináveis entre os amigos, era o Cinema, nosso ponto de encontro obrigatório na praça central, onde nos reuníamos para nos conectar com o que havia de novo através dos filmes. Era essa a nossa única janela para o mundo.
A programação semanal do cinema incluía 4 longas. Com raras exceções, eram películas produzidas nas décadas de 40 e 50, além dos seriados dos anos 30 e Cinejornais, como os de Primo Carbonari, Canal 100 e os belos documentários de Jean Mazon, sempre nos deixando ansiosos, pois esses antecediam a atração principal anunciada pelo serviço de auto-falantes do próprio cinema.
Meu irmão José Moacir Jorge, junto com o Luiz Solha, eram os projecionistas do cinema e isso era muito importante para mim, pois garantia minha entrada franqueada ao cinema e à própria sala de projeção, lugar místico e sagrado, cujo acesso era reservado a poucos “eleitos”.
Como os filmes eram exibidos duas vezes, em dias diferentes, exceto os dos domingos que eram exclusivos, nos dias de estréia eu os assistia da platéia e no segundo dia de exibição, eu ajudava na sala de projeção, rebobinando os rolos dos filmes já processados, deixando-os prontos para serem despachados no dia seguinte. Um longa de acetato é constituído em geral de 5 a 7 rolos, então tinha muita tarefa a ser feita.
Esse era o ambiente em que vivia, rodeado de um mundo imaginário a alimentar meus devaneios infantis, com imagens, cores e sons, compondo sonhos de fantasias, a lembrar muito o poético e belo filme “Cinema Paradiso”, que conta a estória de infância narrada pelo personagem Salvatore di Vita (Totó), que assim como eu, era o ajudante do projecionista Alfredo e que posteriormente se tornaria um cineasta italiano de grande renome (a identidade, naturalmente, para por aí).
Foram sonhos de uma infância perdida mas que continuam a inspirar a minha imaginação de sempre, pois as aspirações são sempre movidas por sonhos.
Assim sempre ficou a indagação: O que é sonho, o que é realidade!
Passados mais de 50 anos, ainda me vem à mente sobre o que de fato somos nós:
O projecionista, o projetor ou a projeção (que é a película exibida na tela ou ecran)?
À primeira vista pode ser uma indagação amalucada, pois como podemos nos comparar uma pessoa àquela que está a projetar, ou a uma máquina, ou ainda a uma simples cena que não tem consistência palpável e material?
No entanto, parece-me ser pertinente esse exercício.
Vejamos:
O projetor é um mecanismo dotado de um sistema onde giram dois carretéis que acondicionam uma bobina de fita com fotogramas que se movimentam a uma velocidade onde são enquadrados contra uma luz projetada a partir de dois carvões de polaridade elétrica opostas, que não se tocam, mas que ficam a uma distância tal que entram em fusão. Essa luz de intenso fulgor é capaz de transferir as imagens estáticas capturadas pelo obturador contra lentes, mas que pela sequência com que passam no obturador se tornam dinâmicas (24 fotogramas por segundo), conduzindo a imagem em aparente movimento à tela de exibição. É uma mera ilusão, pois não percebemos os intervalos das projeções dos quadros.
Assim é o nosso corpo físico, dotado de recursos capazes de fazer com que nos projetemos neste mundo. A capacidade com que exerceremos a projeção depende do bom funcionamento do mecanismo, principalmente no conjunto luz e lentes que garantirão a clareza das imagens obtidas. A luz não pode ser tão intensa a ponto de provocar um curto circuito (quando os dois carvões positivo e negativo se encostam), levando a uma pane. Há a necessidade de estarem a uma distância tal para promover a luz, mas não tão distante, pois não haverá a projeção. Esse é o conjunto corpo físico e corpo vital que interage com o mundo das projeções.
A película por sua vez, constituída por uma sequência de imagens estáticas, ganham, pela dinâmica do movimento, aparente “vida” ao se projetar na tela, com os personagens e roteiros pré-definidos e é aí que nosso mundo se revela, dando falsas aparências de realidade. É justamente neste ambiente que nós acreditamos nos encontrar, onde nos confundimos com as imagens e as representações dos meros personagens (protagonistas ou coadjuvantes) de uma tragicomédia ou drama que transformamos nossas próprias vidas.
Porém, embora não percebamos, somos de fato o projecionista.
O projecionista é aquele que personifica o espírito que nos rege, executando o script escolhido, com a responsabilidade de que esse seja levado a um bom termo até o fim do filme da vida.
Fico a me perguntar se é mero acaso que o fictício protagonista do filme “Cinema Paradiso” que é o próprio projecionista é chamado “Salvatore Di Vita”.
Traduzindo literalmente para o português Salvatore Di Vita é o “Salvador de Vida”, que rege, vive e atua no idílico paraíso, como nós o fazemos na vida real e não nos damos conta dessa realidade.
Somente seremos Seres plenos quando, pelo autoconhecimento, fizermos a união de nossa real identidade (projecionista) com os transitórios papéis que exercemos, servindo de fonte de experiências para o enriquecimento da alma, ainda que sejam sonhos.
Parece-me que se continuamos a nos confundir com a nossa personalidade, como meros personagens com os quais nos identificamos (eu sou isso ou aquilo, eu fiz isso, eu tenho...), continuaremos em devaneios infantis sonhando falsos sonhos sonhados.
Fernando Pessoa, está a nos inspirar em Poesias Inéditas em Nada que sou me interessa:
Nada que sou me interessa.
Se existe em meu coração
Qualquer coisa que tem pressa
Terá pressa em vão.
Nada que sou me pertence.
Se existo em quem me conheço
Qualquer coisa que me vence
Depressa a esqueço.
Nada que sou eu serei.
Sonho, e só existe em meu ser,
Um sonho do que terei.
Só que o não hei-de ter.
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Que a paz esteja nos corações.