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Somos todos Narcisos e Perséfones? - Ensaio

SOMOS TODOS NARCISOS E PERSÉFONES?

Um passeio pelos mitos e seus significados

De acordo com o hino Homérico, Deméter (Ceres) irmã de Zeus (Júpiter) teve com ele uma filha muito bela chamada Perséfone (Proserpina). Desde o seu nascimento Zeus havia prometido Perséfone a Hades (Plutão), seu irmão e deus das regiões inferiores (Tártaro – o mundo subterrâneo e infernal), sem o conhecimento de sua mãe.

Em certo dia, quando Perséfone estava a colher flores de narcisos, foi surpreendida pela presença de Hades, que a raptou, levando-a para as profundezas de seu reino.

Quando Deméter soube do ocorrido caiu em profunda tristeza e deixou de produzir os alimentos, pois é ela a deusa da fertilidade e que provê todo alimento necessário à vida (1).

Revoltada, a deusa fechou-se em seu templo e trouxe seca e fome sobre toda a terra.

A revolta de Deméter, na medida em que trouxe a seca e a fome sobre toda a terra, criou uma situação em que colocava a vida da manifestação sob ameaça, assim como a ameaça do próprio reino dos deuses, pois a existência dos deuses somente é possível se existirem os homens, suas criaturas. Assim Deuses e Homens são interdependentes.

Após o envio por Zeus de vários emissários às profundezas (Tártaro) para negociar com Hades uma solução, onde pudesse libertar Perséfone e restaurar a ordem no mundo, sem que os mesmos pudessem pelo menos serem colocados em sua presença, pois eram imediatamente destruídos, Hermes (Mercúrio), o filho mais novo de Zeus e seu mensageiro, foi designado para a difícil missão.

Todavia, Hermes que era mestre entre várias artes incluindo a comunicação e a retórica, conseguiu estar na presença de seu tio e apresentou um argumento lógico e consistente, que fez com que Hades, após raciocinar sobre o assunto, resolvesse a questão de forma diplomática.

Hermes simplesmente expôs que os homens estavam morrendo de inanição e em curto período não haveria mais vidas a alimentar o processo de nascimento e morte, colocando o reino dos mortos também sob ameaça. Não havendo mais mortos, não haveria mais a necessidade do Tártaro e não havendo mais o mundo das profundezas não haveria a continuidade do reinado do próprio Hades.

Hades, igualmente astuto e compreendendo o perigo da situação, aceita libertar Perséfone, no entanto, dá para ela ingerir uma parte de uma romã (3 sementes), consignando que dos 12 meses do ano, três deveria retornar aos mundos inferiores para ficar em sua companhia (2).

A REVELAÇÃO DO MITO

Perséfone ao colher narcisos, flor de rara beleza, associa-se ao mito de Narciso, filho de um deus-rio e de uma ninfa.Narciso foi concebido belo e perfeito e quando ele vê seu rosto refletido em um espelho de água, imediatamente se apaixona pela sua própria imagem e se perde na auto-admiração, centrado no próprio ego e passa a negar tudo o que não provém dele próprio, como podemos ver na magnífica obra de Caravaggio (Ver figura).

Na realidade todos nós somos Narcisos, na medida em que somos belos e perfeitos enquanto espíritos (representado pela nossa tríade superior). A nossa beleza está intimamente ligada à nossa origem divina, pois somos expressões da mesma fonte da deidade.

No entanto, quando mergulhados na matéria, representada pelo elemento água, que simboliza as emoções e as paixões humanas, nós nos perdemos nas teias da ilusão e dos enganos, (representado pelo triângulo invertido) e “caímos” em inveja” (primeiro dos “pecados originais”, não (in) vemos (veja) a nossa real natureza) e na medida em que não nos reconhecemos como a imagem e semelhança de Deus, negamos a nossa nossa verdadeira essência, apaixonamos por nós mesmos e experimentamos toda sorte de vicissitudes, próprias do reino do ego psicológico.

Perséfone, filha dos deuses, vivia no mundo divino e ao colher narcisos estava a procurar a sua manifestação no mundo do fenômeno, até ser raptada, onde foi viver com Hades, sendo diariamente estuprada e submetida ao poder e caprichos de seu senhor.

Hades, dentro da iconografia, personifica a morte, assim como seu pai Cronos (Saturno), porém a morte aqui deve ser encarada sob o ponto de vista do espírito. Quando agrilhoados ao corpo físico somos nós que estamos mortos, ao menos para a sua realidade divina.

Assim, o inferno é o nosso plano da existência física e é aqui que estamos mortos e em sono para a realidade do espírito. Paulo em Efésios 5:14, diz.“Desperta, tu que dormes! Levanta-te dentre os mortos e o Cristo te iluminará.”

Os três meses representados pelas três sementes de romã que ingerimos, constituem-se no período em que passamos encarnados num “inferno da ilusão”, mas necessário para o aprendizado da alma.

Com Hades, representando o plano da matéria, é onde perdemos nossa virgindade divinal, incitando-nos a toda sorte de prazeres e dores, atrações e repulsas, determinado pelo nosso desejo que nos leva a gostar das experiências de uma vida onde somos violentados e vilipendiados por nós próprios em nossas errôneas escolhas. Tudo isso leva a nos tornar escravos pelo exercício do poder ilegítimo e espúrio que acreditamos ter neste mundo da ilusão.

Estamos, então, fadados a sermos eternos Narcisos, Perséfones e o próprio Hades?

Parece ser essa é a trajetória do aprendizado: Fazermos escolhas e nos submetermos, por consequência, às experiências pelas dores das vidas.

Sempre há a pergunta: Qual é o propósito, então, da vida? Se somos divinos, por que sofremos?

Sim, somos divinos e puros na essência, mas ingênuos e corrompidos pela ignorância.

Assim, há a necessidade de que possamos ser sábios e não corrompidos e isso somente é possível pelo árduo aprendizado, como os diamantes que são forjados nas mais altas temperaturas e pressões.

Este é o caminho para obteremos o domínio completo no uso da matéria e sermos hábeis na solução dos problemas e no desprendimento de tudo aquilo que nos aprisiona à vida no mundo do fenômeno.

Quando saciarmos definitivamente a sede de viver, podemos nos libertar desta roda de “nascimentos e mortes”.

E a chave que abrirá esse caminho da liberdade é o entendimento e aceitação da perpétua essência que nos anima, pelo autoconhecimento que pavimenta a volta a nossa casa de origem, a nossa verdadeira morada.

É sempre bom lembrar e refletirmos sobre o enunciado estampado internamente no Templo de Apolo em Delphos, alertando-nos:

“Homem, conheça-te a ti mesmo, pois conhecerá os deuses e o universo”.

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(1) Deméter está associada à grande mãe (deusa mãe ou talvez mãe da distribuição), ou Do mar, Da mãe, Maya ou Maria, nomes que estão em várias tradições, como a Mãe de Budha, Hermes e Jesus ou mãe de todos nós que a reverenciamos como a mãe da vida. A vida provém do mar, da água e como isso é universal, também não é diferente dentro da cosmo-visão grega.

(2) Essa é a poética visão dos gregos antigos para a existência das quatro estações do ano, onde nove meses (Primavera, Verão e Outono) são produtivos e três meses (Inverno) a vida entra em dormência, numa alusão à morte.

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